Na noite de 31 de março para 1º de abril de 1964, o presidente instituído João Goulart foi
deposto por um golpe de Estado organizado por forças civis e militares. Apoiados pelo
empresariado urbano e rural, por diversos setores da classe média, por políticos da UDN e do
PSD, pela Escola Superior de Guerra e pelo Alto-Comando das Forças Armadas, os golpistas
instalaram uma ditadura militar que perduraria por mais de 20 anos. O regime foi marcado pelo
autoritarismo, pela intensa repressão policial e militar, pela limitação dos direitos políticos dos
cidadãos, pela contínua violação dos direitos humanos de presos políticos e pela supressão da
liberdade de expressão.
Resumo
As canções de protesto compostas durante a ditadura militar (1964-85) ocupam
um lugar especial na história da música popular brasileira. Esse tipo de registro,
explorado como material didático-pedagógico nas aulas de História do Brasil,
além de tornar as experiências em sala de aula mais prazerosas e instigantes,
enriquece a bagagem cultural dos alunos e convida-os a refletir sobre a
importância da luta pela democracia e pelo respeito aos direitos humanos.
Propomos aqui que esse trabalho seja realizado com base nas músicas “Apesar
de você” e “Cálice”, de Chico Buarque de Hollanda.
Palavras-chave
Ditadura militar no Brasil; censura e repressão; resistência cultural; Chico
Buarque de Hollanda; música popular brasileira
Série-alvo
Ensino Médio (3ª ANO)
Duração
1 aula de 50 minutos
Objetivos
Valorizar o patrimônio cultural brasileiro e incentivar atitudes favoráveis ao
fortalecimento da democracia.
Interface
Artes Plásticas, Ciências, Geografia, Língua Portuguesa.
A despeito da ação dos órgãos de censura e do recrudescimento da repressão após o AI-5,
entre 1968 e meados da década seguinte, artistas oriundos de uma classe-média progressista
se projetaram no panorama musical entoando canções de protesto contra a ditadura militar e
contribuindo para consolidar a mítica da MPB como espaço de resistência política e cultural.
Nesse cenário, um nome se destacou entre os demais: Chico Buarque de Hollanda. Neto do
filólogo e lexicógrafo Aurélio Buarque de Hollanda e fi lho do historiador e sociólogo Sérgio
Buarque de Hollanda, Chico Buarque parece ter nascido sob o signo das letras. Esse dom,
aliado a uma profunda aversão aos regimes autoritários – outra marca familiar – logo se fi zeram
presentes em sua obra, de forma que os versos fortes e politicamente comprometidos de suas
canções não tardaram a torná-lo um dos artistas mais visados pela censura militar.
Essa situação fez com que se exilasse na Itália, de onde regressaria mais de ano depois, em
março de 1970, convencido pelo diretor de sua gravadora, André Midani, de uma suposta
melhora na situação do país. Mas chegando aqui, percebeu que havia acontecido o inverso.
A censura tornara-se menos tolerante e a repressão mais violenta. Foi nessa época, chamada
“anos de chumbo”, que ele escreveu algumas de suas mais conhecidas canções de protesto.
Analisar essas composições juntamente com os alunos em sala de aula, evidenciando a estreita
relação entre a produção cultural e os acontecimentos políticos daquela época, é uma ótima
oportunidade de mostrar para os jovens que diferentes registros podem ser utilizados na
investigação histórica, e que a música tem muito a nos revelar sobre a situação política e social
do país nos tempos da ditadura.
Sugerimos aqui que o professor trabalhe com as composições “Apesar de você” (Chico
Buarque, 1970) e “Cálice” (Chico Buarque e Gilberto Gil, 1973). Chegando à sala de aula, sua
primeira providência deve ser colocar as músicas para tocar e distribuir as letras para os alunos.
Feito isto, o professor pode estabelecer um diálogo com a turma, perguntando se algum deles
já tinha ouvido uma daquelas canções, se são capazes de identificar o cantor e se compreendem
o signifi cado das letras apresentadas. À medida que as respostas aparecem, o professor deve
expor para os alunos uma pequena biografi a do cantor e explicar as condições em que cada
música foi escrita. Num segundo momento, as letras podem ser analisadas separadamente,
explorando-se o signifi cado de cada estrofe e reportando-o à conjuntura política da época,
particularmente no que se refere à supressão dos direitos políticos e à violação dos direitos
humanos dos cidadãos.
“Apesar de você” foi escrita por Chico Buarque assim que voltou do exílio. Uma leitura
menos atenta da música permite que seu tema seja identificado como uma briga de namorados,
e talvez tenha sido por esse motivo que a composição passou tão facilmente pela censura.
Lançado num compacto simples, o disco vendeu quase cem mil cópias e estourou nas rádios
de Rio de Janeiro e São Paulo, sendo cantado em coro por todos aqueles que se mostravam
descontentes com a manutenção do regime autoritário. Eis a letra da música:
No auge do sucesso desse animado samba, tornado hino de resistência à ditadura, um jornal
insinuou que a música teria sido escrita em homenagem ao presidente Emílio Garrastazu
Médici. Só então a letra da música foi compreendida pelos militares, que responderam à afronta
proibindo a execução da música, invadindo a gravadora e recolhendo os discos produzidos
para destruí-los posteriormente.
Como podemos observar, a despeito da falha do censor responsável pela liberação da música,
seus versos contêm referências explicitas ao fi m da liberdade de expressão (Hoje você é quem
Apesar de você
(Chico Buarque, 1970)
Hoje você é quem manda
Falou, tá falado
Não tem discussão
A minha gente hoje anda
Falando de lado
E olhando pro chão, viu
Você que inventou esse estado
E inventou de inventar
Toda a escuridão
Você que inventou o pecado
Esqueceu-se de inventar
O perdão
Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Eu pergunto a você
Onde vai se esconder
Da enorme euforia
Como vai proibir
Quando o galo insistir
Em cantar
Água nova brotando
E a gente se amando
Sem parar
Quando chegar o momento
Esse meu sofrimento
Vou cobrar com juros, juro
Todo esse amor reprimido
Esse grito contido
Este samba no escuro
Você que inventou a tristeza
Ora, tenha a fineza
De desinventar
Você vai pagar e é dobrado
Cada lágrima rolada
Nesse meu penar
Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Inda pago pra ver
O jardim florescer
Qual você não queria
Você vai se amargar
Vendo o dia raiar
Sem lhe pedir licença
E eu vou morrer de rir
Que esse dia há de vir
Antes do que você pensa
Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Você vai ter que ver
A manhã renascer
E esbanjar poesia
Como vai se explicar
Vendo o céu clarear
De repente, impunemente
Como vai abafar
Nosso coro a cantar
Na sua frente
Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Você vai se dar mal
Etc. e tal
manda / Falou, tá falado / Não tem discussão), seu descontentamento com a continuidade
do regime (Quando chegar o momento / Esse meu sofrimento / Vou cobrar com juros,
juro), e a esperança na reabertura política (Apesar de você / Amanhã há de ser / Outro dia).
Questionado sobre quem era o “você” referido na música, Chico respondeu: “É uma mulher
muito mandona, muito autoritária”. Oportuna analogia...
Já a música “Cálice” foi composta com Gilberto Gil em 1973, para ser especialmente
apresentada num evento promovido pela PolyGram. No entanto, no dia do show, os microfones
dos cantores foram desligados para que não pudessem cantar sua música. Indignados, os
cantores procuraram outros microfones para que pudessem cantar, mas um a um eles foram
sucessivamente desligados. Desta forma, calou-se “Cálice”.
Boa parte da música pode ser compreendida como uma analogia entre a Paixão de Cristo e o
sofrimento vivido pela população aterrorizada com o regime autoritário. O refrão (Pai, afasta
de mim esse cálice / De vinho tinto de sangue) faz uma alusão à agonia de Jesus no Calvário,
mas a ambigüidade da palavra cálice/cale-se, repetida ao fundo por uma segunda voz, nos
remete à atuação da censura. Por outro lado, num outro trecho da música (Silêncio na cidade
não se escuta) é ressaltada a incapacidade das forças repressoras para fazerem calar a voz da
resistência. Nesse caso, o silêncio pode ser metaforicamente relacionado à censura, que, desta
forma, é entendida como uma quimera, um absurdo inexistente, porque, na medida em que o
silêncio não se escuta, o silêncio não existe. Isso porque, como se afi rma num outro trecho:
“mesmo calada a boca, resta o peito e mesmo calado o peito, resta a cuca”. Em outras palavras,
a censura pode calar seus opositores, mas não é capaz de impedir-lhes o sentir e o pensar.
Cálice
Chico Buarque e Gilberto Gil, 1973
(refrão)
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue
Como beber dessa bebida amarga
Tragar a dor, engolir a labuta
Mesmo calada a boca, resta o peito
Silêncio na cidade não se escuta
De que me vale ser filho da santa
Melhor seria ser filho da outra
Outra realidade menos morta
Tanta mentira, tanta força bruta
Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada pra a qualquer momento
Ver emergir o monstro da lagoa
De muito gorda a porca já não anda
De muito usada a faca já não corta
Como é difícil, pai, abrir a porta
Essa palavra presa na garganta
Esse pileque homérico no mundo
De que adianta ter boa vontade
Mesmo calado o peito, resta a cuca
Dos bêbados do centro da cidade
Talvez o mundo não seja pequeno
Nem seja a vida um fato consumado
Quero inventar o meu próprio pecado
Quero morrer do meu próprio veneno
Quero perder de vez tua cabeça
Minha cabeça perder teu juízo
Quero cheirar fumaça de óleo diesel
Me embriagar até que alguém me esqueça
A música também nos remete a outras questões como os mal explicados desaparecimentos
e execuções de presos políticos (Tanta mentira, tanta força bruta), a angústia trazida pelo
convívio com os aparelhos repressores (Como é difícil acordar calado) e a falta de perspectiva
para a instauração de um regime democrático (Como é difícil, pai, abrir a porta). Veja a letra
da música:
Ao longo de sua exposição e do diálogo com os alunos, o professor deve ter a preocupação
constante de valorizar o patrimônio cultural brasileiro e incentivar entre os alunos atitudes
favoráveis ao fortalecimento da democracia. Para evidenciar como a conjuntura política de uma
época pode interferir diretamente na produção e na disponibilização de artigos culturais, vale
lembrar que “Apesar de você” e “Cálice”, juntamente com “Tanto mar”, só seriam liberadas
para gravação em 1978, quando havia tido início o processo de abertura.
Como desdobramento dessa atividade, sugerimos que os alunos sejam incentivados a trazer,
para a aula seguinte, músicas atuais que expressem em suas letras, de maneira mais ou menos
explícita, uma visão crítica dos problemas políticos e sociais enfrentados pela população nos
dias de hoje. É recomendável que o professor conduza a atividade de uma maneira divertida,
bem humorada e com muita paciência, pois atividades envolvendo músicas que fazem parte
do repertório cotidiano dos alunos costumam inspirar reações bastante empolgadas. Depois
de apresentarem suas canções, os alunos serão convidados a analisar o conteúdo das letras,
explicando o signifi cado dos trechos mais importantes e relacionando-os a questões políticas e
sociais concretas. Ao avaliá-los, o professor deve verifi car se os alunos demonstram autonomia
intelectual, sendo capazes de analisar criticamente e adequadamente fontes históricas
alternativas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARNS, P.E. Brasil: nunca mais. Petrópolis: Vozes, 1884.
CASTRO, Rui. Chega de saudade. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
CHIAVENATO, Júlio José. O golpe de 64 e a ditadura militar. São Paulo: Moderna, 1994.
CONY, Carlos Heitor et. al. Vozes do golpe. 4 vols. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
CÔRTES, Norma et alii. História. Reorientação curricular (versão preliminar). Secretaria de Estado
de Educação do Estado do Rio de Janeiro. 2004.
GASPARI, Elio. A ditadura envergonhada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
___. A ditadura escancarada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
___. A ditadura derrotada. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
HOMEM DE MELLO, Zuza e SEVERIANO, Jairo. A canção no tempo: 85 anos de música brasileira:
de 1958 a 1985. São Paulo: Editora 34, 1997.
REIS, Daniel Aarão. Ditadura militar, esquerdas e sociedades. Rio de Janeiro: Zahar, 2000